o Chefe Estrada

 

Conversa ao pé do fogo.

Um caso misterioso do Chefe Estrada.

 

Hoje não sei por que me lembrei do Chefe Estrada. Fizemos a Insígnia de Sênior juntos. Durante a Insígnia no sexto dia, ele desapareceu. Sua tralha estava lá na barraca. Parecia que não havia levado nada se realmente tivesse partido. Interrompemos tudo para dar uma busca nas redondezas. Durante toda a tarde o procuramos. À noite o Diretor do Curso foi até a delegacia próxima fazer um boletim de ocorrência. O delegado sorriu e disse que aguardássemos até o dia seguinte. E ele iria aparecer. Achou que o Chefe Estrada era um mulherengo e conheceu alguma mulher. Era dar tempo ao tempo e ele iria aparecer. Mas passou toda a manhã do dia seguinte e o Chefe Estrada não apareceu. Ligaram para a telefonista de sua cidade (1952, poucos telefones) e ela disse que o conhecia. Iria ver se ele estava lá.

 

- Já ia anoitecendo quando o Chefe Estrada chegou. Não disse nada. Procurou o Diretor do Curso e se colocou a disposição para que fosse excluído do curso já que saiu do campo sem avisar. Não quis explicar, mesmo sendo inquirido. Tinha um semblante sério e compenetrado. O Diretor de Curso já o conhecia de longa data. Mandou ele de volta a sua patrulha. Soube depois que foi aprovado. Ninguém ficou sabendo o que ouve. - Um dia, se não me falha a memória, encontrei o Chefe Estrada em um acampamento internacional de patrulhas no Chile. Faz anos. Muitos. Ele estava como dirigente do campo sênior. Nunca fomos muito íntimos mesmo assim a alegria estava estampada em cada um de nós. Velhos escotistas se encontrando, cumprimentando, dois chefes escoteiros amigos cuja fraternidade era ponto de honra.

 

- Estava vivamente interessado no desfecho da história que aconteceu com ele naquele curso e o porquê sumiu como se tivesse virado fumaça.  Depois de ledices e alegrias pelo encontro, fomos até a cantina do campo, onde serviam cafés, doces e salgados. Bebidas somente refrigerantes. Procuramos um local agradável, próximo a uma araucária gigante, frondosa, e ali conversamos por longo tempo. A principio o Chefe Estrada não quis se abrir comigo. Eu que nunca esperava uma situação inusitada dele de abandonar um curso por mais de vinte e quatro horas, sabia que ele teria um motivo muito forte para isso.

 

- Me contou que durante vários anos andou por vários estados brasileiros, pois fora admitido em uma multinacional alemã, e seu trabalho de campo (engenheiro de minas) requeria viagens em locais inóspitos, e passava a maior parte do seu tempo em minas de extração de minérios. Narrou-me um fato pitoresco, quando foi seqüestrado por uma tribo de índios Caiapós, próximo à fronteira do Pará com Mato Grosso, na região do rio Xingu. - Dizia o Chefe Estrada que por motivos profissionais estava fazendo uma pesquisa de um veio muito grande de bauxita, pois sua empresa estava interessada em explorar e até construir uma fábrica de alumínio naquele estado. Diariamente faziam pesquisa do solo (eram cinco três deles nativos da região). Ele se sentia bem ali, sempre gostava da vida ao ar livre. O escotismo o ensinou muitas coisas.

 

- No oitavo dia à tarde, o sol se pondo e de súbito apareceram dezenas de índios Caiapós. A principio foram cordiais e afáveis. Depois exigiram que os acompanhássemos. Eram muitos. Não havia o que discutir. Chegamos à comunidade deles, um aldeia com uma praça central e ao redor casas de cada família. O “Benadióro”, chefe de turma no entender deles me levou até ao cacique. Magro, com o corpo todo pintado, me recebeu com um sorriso. Disse que ficaria ali até o homem branco da Estrada de Ferro viesse conversar com ele.

 

- Tentei explicar que nada tinha a ver com a empresa em questão, mas ele libertou os demais e eu fiquei ali. Voce talvez não saiba, mas sou solteiro e meus familiares moram na Europa. Foram oito meses de um lindo cativeiro, onde vivi e aprendi memoráveis aventuras, de caça, de pesca e grandes jornadas na selva. E olhe o que mais adorava era fazer pioneiras. Tinha tempo. E muito tempo. Construí um ninho de águia em uma seringueira, que tinha mais de 20 metros de altura. Aproveitei uma queda d’água próxima alta e em árvores enormes com bambus gigantes fiz um elevador movido à água! Foi maravilhoso. Claro tinha comigo vários assistentes. Os jovens da aldeia eram companhias constantes. Meus amigos. Cheguei mesmo a organizá-los em patrulhas, mas não deu certo. Eram deliciosos moleques travessos, só viviam sorrindo e brincando.

 

- Eles aplicavam aos jovens na puberdade uma interessante prova de inteligência e habilidade, que posteriormente adaptei para a Tropa Sênior. Um galho elevado, duas árvores próximas em perpendicular, (Perpendicular é quando temos duas retas com um ponto comum formando um angulo de 90 graus) duas cordas (lá se usava cipó) amarradas no galho uma distante da outra por um metro, cada competidor ficava em uma arvore próxima de frente para a outra com sua corda. Ao sinal penduravam na corda e aproximavam-se do outro em grande velocidade e o outro competidor fazia mesmo. Ao se encontrarem tentariam fazer que um deles perdesse o equilíbrio e cair ao chão. Para os seniores adaptei uma bexiga amarrada na cintura de cada um bem cheia com água para ser estourada. Para isso cada um levava uma vara de um metro consigo. Claro, cada competidor só tinha direito a uma vez. Depois o próximo da patrulha. Grande prova. Adorei participar, mas perdi – caí de maduro disse o Chefe Estrada.

 

- O governo mandou vários representantes da empresa para negociarem com os índios. Eu não me preocupava. Gostava dali, vivia com um povo simples, sem ódio, sem rancor, sem inveja, ninguém queria ser superior, a amizade era ponto de honra e as leis, todas muito simples e obedecidas com carinho. Olhe, quando chegaram a um acordo, preferi continuar ali. Pedi demissão da empresa. O cacique Babitonga era uma grande pessoa. Disse que eu era bem vindo. Até fez meu casamento com a jovem índia Guaraci. Já éramos par constante. Eu e ela ficamos juntos por todo esse tempo que ali permaneci.

 

- Mas dizem que tudo que é bom dura pouco. Uma manhã de setembro fui informado que minha mãe estava nas últimas. Esse telegrama chegou as minhas mãos na aldeia um mês depois. Despedi de todos, Guaraci não quis ir comigo. Disse a ela que seria difícil minha volta. Mesmo assim preferiu continuar entre os seus. Disse-me que os homens brancos não se conhecem, são estranhos. Concordei com ela. Ainda bem que não tivemos filhos. - Minha mãe já havia falecido quando consegui chegar a Iworth, em Cheshire na Inglaterra. Cumpri as cerimônias de praxe, pois ela era de família simples e não havia nenhuma herança a não ser sua casinha que vendi. Retornei ao Brasil poucos meses depois, após passar uns dias com meus amigos Makuxis e Wapixana em Kwazulu, na África do Sul.

 

Afinal meu amigo, o que houve no Curso da Insígnia que você desapareceu sem deixar rastros? – Ele, calmo, pensativo, ficou calado. – Vamos homem, diga! Afinal não deve ter sido tão importante assim. – Olhe meu caro, passei poucas e boas nessa vida, mas você sabe mentir não faz parte do meu feitio. Foi uma aventura tão inverossímil, que preferi mantê-la no anonimato. Mas vou contar para você. Se mostrar incredulidade, paro. - Não disse nada. Continue falei. – Olhei para ele, ele suspirou e começou uma história incrível. Ouçam-na – Logo após terminar a sessão das duas, pedi ao dirigente para ir ao banheiro. Fui naquele lá no inicio do campo. Ao atravessar a trilha, vi um brilho intenso. Perdi o sentido. Acordei em uma cama enorme, Ao meu redor, pessoas estranhas, escuras, parecendo formigas gigantes com duas pernas.

 

– Caramba! Pensei. O que tinha acontecido? Onde estava? - Respirei fundo. Seria verdade? – Chefe Estrada me olhava, querendo parar de narrar, mas meus olhos, minha atenção não deixava nenhuma dúvida. Começou termina. – Olhe meu amigo dizia, eu tinha sido abduzido. Você sabe, estava em uma grande nave, onde? Não sabia. Em algum lugar do espaço. Os ET’s me olhavam e sentia que tinha agulhas em todo corpo. Minha mente parecia estar exposta. Ouvia-os falando e não entendia, eles pareciam saber o que eu pensava.

 

- Acredite, eu olhava em volta, paredes circulares e o teto também com iluminação indireta. Uma luz estranha. Eles telepaticamente falavam comigo, para não preocupar, não iriam me fazer mal. Não demorou muito, me levantei, me sentia forte, eles não se opuseram. Em sua maneira, me contavam de onde eram. Um planeta distante mais de vinte milhões de anos luz, mas que eles cruzavam o espaço em velocidades que a mente não pode medir. - Olhava para o chefe Estrada e não sorria. Poderia ser verdade. – Ele continuou – Me disseram que ficamos mais de um mês no espaço e quando voltasse a terra, seriam menos de vinte quatro horas. Levaram-me até um local envidraçado. Um espetáculo. A nave parecia estar parada e milhões de estrelas passavam como um raio, uma profusão de luzes brilhantes e cintilantes, em um panorama incrível. Ver tudo aquilo compensava todas minhas pequenas dores que ainda sentia pelo corpo.

 

- Me levaram depois a um salão, sem móveis, se despediram que não me preocupasse que iriam apagar tudo aquilo da memória e eu não ia lembrar-me de nada. Pedi que não fizessem aquilo. Não podia esquecer. Eles na tinham esse direito. Entreolharam-se e balançaram a cabeça concordando. Minha mente ficou nevoada. Desmaiei. Acordei no mesmo local. Daí para frente você sabe o fim da historia.

 

Nunca mais vi o Chefe Estrada. Não sei onde anda, se está vivo, ou se voltou para sua linda Guaraci junto aos Caiapós. Se ele voltou deve estar lá se divertindo, fazendo o seu escotismo junto a índios amigos. Olhe, eu o invejo. Hoje estou aqui, sem respirar o ar puro da mata, sem ver a força de um rio caudaloso, sem poder ver o sol nascer atrás de uma montanha. Daria minha vida para mudar tudo isso. Mas cada um tem o seu destino. Eu tenho o meu e o Chefe Estrada teve o dele. Verdade ou mentira só Deus para dizer. Mas o Chefe Estrada era um Escoteiro e o Escoteiro tem uma só palavra. Portanto nunca duvidei de sua história. Como escreveu Luís Fernando Veríssimo, desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando... Porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive, já morreu...

 

Osvaldo Ferraz 06/07/2013